Os pecados do curso de Pedagogia
Caso eu tivesse de escolher um curso que gosto, mas que eu não faria, eu escolheria o curso de pedagogia. Ao menos não o faria se, para tal, eu tivesse de enfrentá-lo do modo como hoje este curso é desenvolvido na maioria das boas universidades. Do modo como ele tem caminhado, encontro cinco pontos problemáticos que parecem impossíveis de serem ultrapassados. Esses pontos giram em torno dessas cinco palavras: clássicos, estudo, infância, conteúdos e estágio. Olhando para essas palavras, fico com vontade de elencar cinco pecados do curso de pedagogia. Exponho-os de modo breve.
Pecado 1: carência de leitura dos clássicos da educação.
Como a maioria dos cursos de humanidades na universidade atual, o curso de pedagogia também cultiva a predileção pelos “textos”, em geral na forma criminosa da cópia Xerox, em detrimento dos livros. Pode-se fazer um curso completo na área de humanidades, principalmente de pedagogia, sem jamais ler um livro inteiro. Só se lê “textos”.
Todavia, isso se agrava no caso da pedagogia porque os clássicos em educação não são priorizados. Chega-se ao ponto de não se conseguir nem mais falar de O Emílio de Rousseau. Platão, Santo Agostinho, Descartes, Kant, Herbart, Durkheim e Dewey – nem pensar!
Não digo que os alunos não lêem coisas boas. Ao menos nas boas universidades, principalmente nas públicas, eles lêem. Mas eles saem sem ter lido o principal, o fundamental, mesmo que exista uma área chamada de “fundamentos da educação”. A formação teórica do pedagogo, em termos de um contato com a literatura dos clássicos, deixa muito a desejar. Isso coloca o pedagogo em desvantagem entre os profissionais do campo das humanidades. Não vejo nenhum movimento radical no sentido de mudar tal comportamento que vem se repetindo acentuadamente e que, agora, tendo o curso de pedagogia se transformado única e exclusivamente em um curso de formação de professores, parece que até piorou.
Pecado 2: Excesso de entrega de trabalhos e falta de horas de estudo.
A maioria dos cursos de uma boa universidade, especialmente as públicas, faz o aluno assistir muitas aulas, entregar muitos trabalhos, participar de um sem número de avaliações e, portanto, ficar com poucas horas para estudo e para o amadurecimento do que é aprendido. No curso de pedagogia essa irracionalidade é extremamente acentuada. Há uma febre de atividades. Há um cultivo da entrega de trabalhos e mais trabalhos, resenhas (que se transformam em resumos) e mais resenhas para “se garantir a leitura” e, enfim, um tempo enorme de horas perdidas em aulas de “seminários” que, não raro, viram jogral.
Os alunos são solicitados a entregar coisas aos professores. O volume é tão grande que os alunos logo percebem que o curso é irracional e, então, eles passam a tirar da Internet e copiar de veteranos o que precisam entregar. Fazem isso incentivados pelos próprios professores que trabalham com a “pedagogia bancária” e, esquizofrenicamente, se dizem adeptos de Paulo Freire.
Terminado o curso de pedagogia, os alunos dizem francamente: “agora vou estudar, até então eu estava só me livrando do curso, tentando tirar nota e não ficar reprovado”. Todo bom estudante do curso de pedagogia sonha com o fim do curso para, então, começar a estudar e, enfim, aprender algo. É um paradoxo. Mas, nenhum professor do curso de pedagogia rompe com essa regra maldita. O reflexo disso é a monografia de fim de curso, em geral um texto sofrido, exatamente porque o aluno não conseguiu, em três ou quatro anos, amadurecer algo de modo a poder escrever um breve ensaio capaz de ser lido sem que o leitor tenha enjôo.
O professor formado em uma universidade pública é um formador de opinião. No Brasil, muito mais, ao menos em potencial. No entanto, ele é castrado nessa sua atividade, pois ele não sai da universidade sendo capaz de produzir uma narrativa boa, gostosa e convincente a respeito do assunto que aprecia.
Pecado 3: inexistência de estudos a respeito da infância.
Apesar do curso de pedagogia formar professores que irão lidar com crianças, desconhece-se nesses cursos a infância. Fala-se em crianças como alunos, mas não se fala de infância. Quando se toca no termo infância, remete-se a uma noção naturalizada, não a uma noção que foi inventada e construída historicamente. Por isso, quando o curso de pedagogia mostra algo sobre a infância para os alunos, já o faz a partir de uma ótica um tanto enrijecida, com excesso de teorias naturalizadas e naturalizantes, vindas do guarda chuva da psicologia.
O curso de pedagogia é, em geral, psicologizado e, então, quando apresenta para os futuros professores os seus futuros educandos, o faz segundo regrinhas de Piaget e Vygotsky, sem nunca se dar conta de que os seguidores destes foram enganados, pois não conseguiram levar a sério o que os historiadores estamparam nos seus rostos, principalmente a partir dos anos sessenta, com os escritos sobre a criação da infância de Philippe Ariés. Por isso mesmo, há inúmeros livros de didática (Libâneo à frente) que jamais falam de infância, e se prendem demais às “tendências e correntes da pedagogia”. Ora, mas para que servem essas tendências senão para que a infância ocorra, aconteça, ou seja, para que exista um trabalho sobre seres que são qualificados como infantis. Não! Os textos de didática, no geral, cedem para a psicologia o direito de falar de infância e a psicologia, por sua vez, fala apenas de montagens de seres que passam por “assimilação” e “adaptação” etc. A infância não é questionada pelo curso de pedagogia que, no entanto, tem como objetivo gerar pessoas que vão cuidar da infância.
Pecado 4: o curso de pedagogia é negligente quanto aos conteúdos do ensino fundamental.
Agora, na sua nova formulação, que o faz formador de professores, o curso de pedagogia é um curso que cai nos braços da metodologia da matemática, das ciências, da língua pátria etc. Mas, na verdade, uma boa parte dos seus alunos não sabe matemática do ensino fundamental ou ciências do ensino fundamental. Os alunos, quando fizeram o ensino médio, não foram brilhantes alunos nessas áreas. Já no vestibular isso fica claro. Mas, mesmo sem saber fazer as operações básicas, sem conhecer regras básicas da língua pátria e, enfim, não sabendo nada de ciências, eles se acham aptos para estudar as metodologias variadas desses campos. Há até professores que ousam dizer que tais metodologias estão fundadas nesta ou naquela epistemologia! Os alunos são transformados em epistemólogos e metodólogos da matemática, mas saem do curso incapazes de extrair uma raiz quadrada. Aliás, acabam por não saber o que é uma raiz quadrada! Talvez essa seja uma das maiores falhas do curso de pedagogia na atualidade, que reflete muito bem no pouco gosto do brasileiro pelas ciências, português e matemática.
Pecado 5. Excesso de estágio.
O curso de pedagogia se transformou (a partir do MEC da gestão Lula) antes em um curso de formação de estagiários que em um curso de formação de professores. São 400 horas de estágio. Por quê? Porque quem concebeu isso jamais entendeu o que é a escola ou o professor, e adaptou a noção de estágio da área empresarial, de engenharia ou medicina, para o curso de formação de professores.
Um médico precisa de dois anos de residência, pois ele não viveu em um hospital a vida toda, dado que não foi um doente, um internado a vida toda. Mas, no caso de quem faz estágio na escola, 400 horas é muito por que todos que estão no ensino superior ficaram no mínimo 11 anos na escola. Para que voltar para a escola, observando e observando e observando, em uma atividade que só tira o aluno do estudo (e que todos dizem que é inútil) se ele, aluno, três anos atrás, estava naquela sala observando? Ele já observou tudo aquilo durante uma vida toda! Ora, que ninguém venha aqui com a idéia de que voltar à escola é bom, pois se trata de um retorno com “outros olhos”. Quem me retruca assim supõe um aluno imbecil, que não tem memória, que não sabe, com sua teoria, pensar o que ele viveu como aluno no passado. Ora, se não sabe, seu professor, no curso de pedagogia, poderia trabalhar isso. Mas fazê-lo voltar para a escola na qual ele esteve até ontem, é não entender a nossa capacidade de “re-significar experiências passadas” que, enfim, era o que John Dewey dizia que é a educação.
Podíamos ter um melhor ensino do mundo se conseguíssemos escapar desses cinco pecados no Brasil. Mas duvido que façamos isso, adoramos ser pecadores aqui do lado de baixo do Equador.
© 2010 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
http://ghiraldelli.pro.br/2010/07/08/os-pecados-do-curso-de-pedagogia/
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